Por Ane Molina
Dedicado aos amigos que, fotógrafos ou não,
desfrutam comigo desse mundo no qual observar
é somente uma ínfima parte do que é viver.
Não acredito muito em lugares não reencontráveis , em
cheiros não decifráveis, em tempos não memoráveis e em pessoas não marcantes.
Sons não reconhecíveis me apavoram. Não acredito também em imagens que não
ficam. Elas não existem, como Barthes fala. Coisas que não me modificam, não
existem prá mim.
Revi um filme que tinha visto quando era adolescente. Pré-adolescente,
talvez.
Asas do Desejo é de 87. Vi quando passou na tv. Então, devia
ter uns 12, 13 anos. Não imagino se alguém dessa idade veria esse filme hoje,
com a paciência e o encantamento que eu o vi, ainda menina.
Lembro bem do filme. Lembro que muita coisa me passou.
Lembro de que muitas, muitas coisas não entendia. Mas sabe o que mais me marcou
nessa primeira vez? A maneira como a câmera se movia. Como ela voava. A câmera
voava como os anjos. De forma impassível e com um ritmo melancólico, a câmera
observava e consumia as imagens e pensamentos das pessoas. Como os anjos. Numa
incomunicabilidade que, de certa forma, fala muito de como consumimos cinema.
Como meros observadores. Como os anjos. Claro que essa reflexão mais profunda
não me ficou do filme daquela primeira vez. Ficou pouca coisa, além da história
de amor. Era menina, eu queria as histórias de amor.
Dessa vez? Putz! Dessa vez…
Revi pensando em levar prá sala de aula. Falar de cinema e
falar das formas de fazer cinema (os meninos todos assistiram o remake de 98,
Cidade dos Anjos). Falar de formas diferentes de se contar histórias. Falar de
cultura, de meio, de como o cinema é feito de contexto. O cinema é feito pelas
pessoas, que fazem um povo e esse povo tem sua história. Asas do Desejo tem
muito disso. É um filme sobre melancolia, sobre mudança, sobre decisão e sobre
recolhimento. É um filme muito mais sobre solidão do que sobre amor. Mesmo no
seu desfecho, fala sobre solidão, sobre ser só. Queria mostrar para os meninos
mais do que o que eles já viram. E esse filme é mais do que eles já viram, sem
dúvida.
Acontece que, em um âmbito mais pessoal, o filme me remeteu,
diretamente, a questões muito mais densas e profundas e, até mesmo,
egoístas. Não há como separar a figura dos anjos (belos, graves, metódicos e
impessoais) da figura de um outro observador do mundo, que vaga por aí e faz
seus os momentos e sentimentos dos outros. Não há como não pensar em nós. Não
há como não pensar em fotografia. Os anjos ouvem e anotam. Nós olhamos e
fotografamos. Aprisionamos. Colecionamos. E se o anjo, ao invés de colecionar
palavras, colecionasse imagens? Somos anjos que passam pelos lugares e
pelas pessoas e fazem deles parte de nossas pequenas coleções.
A maior parte dos anjos passa a eternidade impassível. Nada
os modifica, eles somente observam. E colecionam. Comentam com os outros anjos
seus achados. Levam para os encontros e projetam para que os outros anjos digam
“Nossa, que trabalho admirável!” E assim eles passam a eternidade, colecionando
seus pequenos tesouros.
Pois deixe-me contar uma coisa que você ainda não sabe.
Existe outro tipo de anjo. Existe o anjo que se deixa cair. Existe o anjo que
não quer observar. Existe o anjo que quer viver. Esse anjo, um belo dia, se
envolve em alguma coisa e muda, resolve estar junto. Ou, em alguns casos mais
especiais, ele, simplesmente, nasce assim. Ele quer viver. Ele não quer só
olhar. Ele decide sentir. Decide estar. Se ele será mais feliz? Não sei. Mas
vai viver, e é o que importa. Se você é esse anjo, toque aqui. Existem muitos
de nós por aí. Para esses, lugares, pessoas, momentos e tudo mais só existem
quando tocados, sentidos e vividos.
Não fique só. Existem muitos de nós por aí, “compañero”.